quarta-feira, 4 de maio de 2016

Mundo Real

 por Caterina Rino - Collectivus de Leitura 

    O que compreendemos hoje como um ‘estado natural de infância’ se difere e muito da compreensão que se tinha anteriormente. A organicidade das mudanças sociais e culturais são intensas e constantes. Podemos dizer que com a aceleração das informações e do acesso a elas, essas mudanças tomam mais força e velocidade. O interesse pela diversidade digital se amplia, e com ele, as relações tendem a se tornar menos próximas, as brincadeiras, menos físicas, a leitura, mais digital. E aí surge a pergunta: As crianças podem ser leitores ativos e sofisticados da mídia? Sim, sem dúvida.  Mas será que esta sofisticação atingirá quais tipos de narrativas? Quais formas de brincar? A literatura seria acessada de que maneira? E as relações entre os pares infantis, como se configuram nessa realidade?
     Tais mudanças socioculturais não devem ser desconsideradas, ou apenas criticadas. Podem ser aceitas e podemos tê-las caminhando lado a lado com aquilo que não pode deixar de existir. Por exemplo: a criança tem que brincar, simplesmente porque é criança e essa ação, o brincar faz parte desta fase da vida do ser humano, a infância[1]. O acesso ao livro ‘de verdade’; ao livro físico, também oferece sensações que sem ele em mãos, a criança ou o adulto jamais experimentariam... sentir o cheiro do papel impresso, folheá-lo, virá-lo de ponta cabeça, montar uma pilha com muitos livros, rasgar, rabiscar, dobrar as páginas, ver a ilustração detalhadamente... esse movimento lúdico é constituído por brincadeiras individuais e coletivas, e nos possibilita “compreender a cultura lúdica infantil como um espaço social no qual as crianças, através de brincadeiras, jogos de faz de conta e fabulações constroem valores e conhecimentos.” (SOUZA; SALGADO, 2008, p. 207).
      A existência de uma cultura produzida pela criança através da interação com o adulto e o mundo a sua volta, pela troca de experiências e olhares compartilhados, posicionamentos e ponto de vista, eleva a criança ao lugar de grande influenciadora na vida social e movimentação cultural, “capaz de intervir, modificar e atuar na dinâmica cultural e social dos sujeitos” (MORUZZI, 2008, p.50). Existem tantas infâncias e crianças distintas... a valorização dessas diferenças enriquece ainda mais o espaço para o lúdico. Ouvir, dialogar e considerar os dizeres e crenças de uma criança permite a troca e participação com sua cultura, enriquece os diálogos, amplia o repertório de todo um grupo envolvido, dentro e fora do mundo digital. “A palavra da criança, como a do poeta, cria outra realidade no lugar daquela já existente. Uma realidade imaginada, com elementos, os quais a realidade concreta não comporta” (SOBRAL, 2014, p.442).
      Em uma sessão de mediação de leitura, a criança que adentra o espaço organizado com livros literários de qualidade e diversificados, é convidada a observar, folhear, tocar, explorar; observa outras crianças, com culturas, repertórios e idades distintas... neste momento, em que a realidade digital se distancia, aproxima-se a física. O mediador está lá, disponível a facilitar um entrosamento, um envolvimento e participação dos presentes; e nesta perspectiva do mediador, ler para uma criança ou a um grupo de crianças não é simplesmente ler, é brincar, por vezes cantar... deitar no chão, dar colo. É contato físico; existem olhares, vozes, ruídos, expressões diversas presentes nessa dinâmica. A troca é constante na dança poética que se constrói e os sentidos estão ativos entre os envolvidos.
    A importância de experiências como essa para grupos infantis, é indescritível... constroem-se e estabelecem-se novas relações entre pares; as diferentes culturas fundem-se e por alguns momentos as diferenças socioculturais se complementam, ampliando cada repertório, cada realidade. O livro aparece como um dos protagonistas nessa dinâmica, na qual caminhos distintos seguem um mesmo rumo por minutos, por horas. Enquanto existir humanidade, serão produzidas culturas.  Para produzirmos cultura, temos que brincar, nos tocar, conversar, olhar, cheirar, sentir. O mundo digital é importante e deve ser valorizado e respeitado, mas acima, muito acima dele precisamos do mundo físico e real; a brincadeira precisa acontecer e a leitura de livros literários compor mais e mais a formação das identidades da infância.
      “Na poesia, a linguagem não se submete a significação estática, a palavra se desdobra produzindo efeitos poéticos, uma licença se abre para que algo novo se produza visando um efeito estético e uma abertura à pluralidade de sentidos” (SOBRAL, p.439).

REFERNÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACKINGHAM, David. Repensando a criança-consumidora: novas práticas, novos paradigmas.  In: Revista Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo. Ano 9 Vol. 9 N. 25 p. 43-72 Ago. 2012.
MORUZZI, Andrea Braga. Cultura da Infância entre textos, desenhos e outras linguagens – intervenções infantis na forma de subjetividade. VI Seminário sobre linguagens – Políticas de Subjetivação – Educação. UNESP Rio Claro, 2008.
SOBRAL, Paula Oliveira e VIANA, Terezinha de Camargo. A fala criativa das crianças e os efeitos poéticos. Estudos clínicos, São Paulo, v.19, n3, set/ dez. 2014, 436 – 450.
SOUZA, Solange Jobim e; SALGADO, Raquel Gonçalves. A Criança na Idade Mídia: Reflexões sobre a cultura lúdica, capitalismo e educação. In: SARMENTO, Manuel; GOUVEIA, Cristina Soares. (orgs.). Estudos da Infância – Educação e Práticas Sociais. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 207 - 221.





[1] A infância é uma categoria social e a criança, o sujeito que a compõe.