por Caterina Rino - Collectivus de Leitura
O que compreendemos hoje como um ‘estado
natural de infância’ se difere e muito da compreensão que se tinha
anteriormente. A organicidade das mudanças sociais e culturais são intensas e
constantes. Podemos dizer que com a aceleração das informações e do acesso a
elas, essas mudanças tomam mais força e velocidade. O interesse pela
diversidade digital se amplia, e com ele, as relações tendem a se tornar menos
próximas, as brincadeiras, menos físicas, a leitura, mais digital. E aí surge a
pergunta: As crianças podem ser leitores ativos e sofisticados da mídia? Sim,
sem dúvida. Mas será que esta
sofisticação atingirá quais tipos de narrativas? Quais formas de brincar? A
literatura seria acessada de que maneira? E as relações entre os pares infantis,
como se configuram nessa realidade?
Tais mudanças socioculturais não devem
ser desconsideradas, ou apenas criticadas. Podem ser aceitas e podemos tê-las
caminhando lado a lado com aquilo que não pode deixar de existir. Por exemplo:
a criança tem que brincar, simplesmente porque é criança e essa ação, o brincar faz parte desta fase da vida
do ser humano, a infância[1].
O acesso ao livro ‘de verdade’; ao livro físico, também oferece sensações que
sem ele em mãos, a criança ou o adulto jamais experimentariam... sentir o
cheiro do papel impresso, folheá-lo, virá-lo de ponta cabeça, montar uma pilha
com muitos livros, rasgar, rabiscar, dobrar as páginas, ver a ilustração
detalhadamente... esse movimento lúdico é constituído por brincadeiras
individuais e coletivas, e nos possibilita “compreender a cultura lúdica
infantil como um espaço social no qual as crianças, através de brincadeiras,
jogos de faz de conta e fabulações constroem valores e conhecimentos.” (SOUZA;
SALGADO, 2008, p. 207).
A existência de uma
cultura produzida pela criança através da interação com o adulto e o mundo a
sua volta, pela troca de experiências e olhares compartilhados, posicionamentos
e ponto de vista, eleva a criança ao lugar de grande influenciadora na vida
social e movimentação cultural, “capaz de intervir, modificar e atuar na
dinâmica cultural e social dos sujeitos” (MORUZZI, 2008, p.50). Existem tantas infâncias e crianças
distintas... a valorização dessas diferenças enriquece ainda mais o espaço para
o lúdico. Ouvir, dialogar e considerar os dizeres e crenças de uma criança permite
a troca e participação com sua cultura, enriquece os diálogos, amplia o
repertório de todo um grupo envolvido, dentro e fora do mundo digital. “A palavra da criança, como a do
poeta, cria outra realidade no lugar daquela já existente. Uma realidade
imaginada, com elementos, os quais a realidade concreta não comporta” (SOBRAL,
2014, p.442).
Em uma sessão de mediação de leitura,
a criança que adentra o espaço organizado com livros literários de qualidade e
diversificados, é convidada a observar, folhear, tocar, explorar; observa outras
crianças, com culturas, repertórios e idades distintas... neste momento, em que
a realidade digital se distancia, aproxima-se a física. O mediador está lá,
disponível a facilitar um entrosamento, um envolvimento e participação dos
presentes; e nesta perspectiva do mediador, ler para uma criança ou a um grupo
de crianças não é simplesmente ler, é brincar, por vezes cantar... deitar no
chão, dar colo. É contato físico; existem olhares, vozes, ruídos, expressões
diversas presentes nessa dinâmica. A troca é constante na dança poética que se
constrói e os sentidos estão ativos entre os envolvidos.
A importância de experiências como
essa para grupos infantis, é indescritível... constroem-se e estabelecem-se
novas relações entre pares; as diferentes culturas fundem-se e por alguns
momentos as diferenças socioculturais se complementam, ampliando cada
repertório, cada realidade. O livro aparece como um dos protagonistas nessa
dinâmica, na qual caminhos distintos seguem um mesmo rumo por minutos, por horas. Enquanto
existir humanidade, serão produzidas culturas.
Para produzirmos cultura, temos que brincar, nos tocar, conversar,
olhar, cheirar, sentir. O mundo digital é importante e deve ser valorizado e
respeitado, mas acima, muito acima dele precisamos do mundo físico e real; a
brincadeira precisa acontecer e a leitura de livros literários compor mais e
mais a formação das identidades da infância.
“Na poesia, a
linguagem não se submete a significação estática, a palavra se desdobra
produzindo efeitos poéticos, uma licença se abre para que algo novo se produza
visando um efeito estético e uma abertura à pluralidade de sentidos” (SOBRAL, p.439).
REFERNÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACKINGHAM,
David. Repensando a criança-consumidora:
novas práticas, novos paradigmas.
In: Revista Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo. Ano 9 Vol. 9 N. 25
p. 43-72 Ago. 2012.
MORUZZI,
Andrea Braga. Cultura da Infância entre
textos, desenhos e outras linguagens – intervenções infantis na forma de
subjetividade. VI Seminário sobre linguagens – Políticas de Subjetivação
– Educação. UNESP Rio Claro, 2008.
SOBRAL, Paula Oliveira e
VIANA, Terezinha de Camargo. A fala
criativa das crianças e os efeitos poéticos. Estudos clínicos, São Paulo,
v.19, n3, set/ dez. 2014, 436 – 450.
SOUZA,
Solange Jobim e; SALGADO, Raquel Gonçalves. A Criança na Idade Mídia: Reflexões sobre a cultura lúdica, capitalismo
e educação. In: SARMENTO, Manuel; GOUVEIA, Cristina Soares. (orgs.).
Estudos da Infância – Educação e Práticas Sociais. Petrópolis: Vozes, 2008, p.
207 - 221.