quarta-feira, 30 de março de 2016

O prazer de ouvir histórias

“Eu fui feito pela poesia, não ela por mim”
Goethe

por Renata Gentile - Collectivus de Leitura

Tantos anos lendo histórias, ou como gostamos de dizer, “mediando leitura” para crianças, jovens e adultos, nos fizeram constatar que quando a literatura é apresentada de forma prazerosa temos grandes chances de formar leitores.

Sabemos também que muitos são os elementos que contribuem para o prazer na leitura: a possibilidade de fruição de uma obra literária (sobretudo às infantis que compõem textos, ilustrações e projetos gráficos primorosos); a liberdade na significação da narrativa e no manejo do objeto livro; a exploração de diferentes interações com as historias; a possibilidade de conhecer o mundo, como coloca Antonio Candido (1972), inclusive o próprio mundo interno, como sugere Bruno Bettelheim (1978).

Ou seja, quando entendemos a mediação de leitura como uma ação cultural – sem uma intencionalidade pedagógica que busca alcançar resultados, passar uma mensagem ou adquirir competências – ela torna-se uma situação prazerosa, fundamental para o percurso do leitor em formação.

Mas além de facilitar uma situação caracterizada pela interação, liberdade e fruição, o mediador de leitura cumpre um importante papel também quando transmite vocalmente um texto. Alguma coisa acontece quando emprestamos a voz para um texto literário...

As crianças costumam demonstrar com o corpo. Respondem de modo singular, às vezes relaxando, se aconchegando, outras vezes agitando-se com a diversão, interação e ludicidade que o livro propõe. Fogem do padrão de comportamento de atenção suposto pelos adultos, ou porque dormem ou porque se movimentam, fazendo com que seja repensado o que deve ser um comportamento leitor.

Quando lemos para adultos e adolescentes percebemos que se surpreendem, tanto com o inusitado da ação (“eu sei ler, por que estão lendo para mim?”) como também com as sensações que ouvir uma história lhes causa.

Não é incomum quem escuta uma história “confessar” que não acompanhou os acontecimentos da narrativa, que na realidade “viajou para longe”, mas que estava gostoso e que se sentiu “entregue” a voz que dava vida ao livro. Nas mediações de leitura por vezes, crianças escolhem narrativas longas, a principio inadequadas às suas idades, mas ainda que não estivessem “entendendo” o conteúdo do livro, pedem para continuar e até para repetir a leitura.

Então nos perguntamos: “por que é tão prazeroso ouvir uma história?”; “de onde vem esse prazer?”. Além de todos os elementos já citados, a tese apresentada nesse artigo é que esse prazer vem de longe...(talvez lá de onde a gente vai parar quando viaja nas historias.)De longe mesmo, nos primeiros meses de vida. No inicio da aquisição da linguagem, lá onde começaram a nos entender como sujeitos; no tempo da delicadeza do “manhês”.

O “manhês” é o termo dado ao modo como as mães – ou os agentes da função materna – falam com os bebês. Aquela fala que abusa de neologismos e de frases curtas, que tem uma melodia, entoação, ritmo, musicalidade. Tal como nos poemas e prosas poéticas, gêneros muito presentes na literatura infantil.

A voz que transmite o texto literário saboreia as palavras, se movimenta com o ritmo, dança com a sonoridade dos versos...embala o bebê que fomos.  O próprio silêncio que surge com as pontuação do texto ou ao virar as páginas do livro são como as pausas que a mãe faz quando espera a resposta vocalizada de seus bebês.
Além da musicalidade, outra analogia entre o manhês e a mediação de leitura  é que ambos convocam o interlocutor, fazem olhar para quem fala, produzem um laço afetivo entre criança e adulto.

“Nessa operação exercida pelo agente da função materna, por meio de seu olhar e sua voz, o bebe deixa de ser puro organismo para inserir-se em um funcionamento simbólico, próprio dos humanos” (Maria Lacombe Pires, 2011).

Nos primeiros dias de vida o choro do bebê é constante e apresenta o mesmo tom em diferentes situações. Com o passar dos meses e a partir da fala que lhe é dirigida, o bebê vai modulando sua vocalização dependendo da situação utilizando sua voz como instrumento para chamar o outro. Assim, o bebê aprende com o "manhês" a se expressar. Dá notícias a uma mãe atenta se está com fome, frio, sono.

Esse estatuto de sujeito provocado pelo adulto que se dispõe ao dialogo também é provocado pelo mediador de leitura que abre brechas para que a subjetividade da criança se expresse na interação com o livro. Lembrando que essa expressão não está para atender a expectativa do adulto e que pode ser inclusive o silencio, o sono, a fala, um movimento.

Ouvir histórias é, portanto, prazeroso por diversos aspectos; entre eles porque remete a uma experiência vivida, fundante da nossa posição de sujeito no mundo.
Incentivemos então que a função poética da literatura  (re)enganche os laços  entre adultos e crianças. Que experiências de leituras compartilhadas estejam presentes na relação de pais e filhos, educadores e alunos para que assim, continuemos nos apropriando da linguagem, da leitura e dos livros. Que a voz de mediadores continue nos ninando. Desse modo, seguros e acalantados, seguiremos nos expressando ao mundo.



PIRES, Maria Lacombe. “Falar com bebês. Será que eles entendem?”in  Entre o singular e o coletivo – Ao acolhimento de bebes em abrigos. (org Fernanda Nogueira) São Paulo, 2011
BETTELHEIM, Bruno. “A Psicanalise dos Contos de Fadas”. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1978 

CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciencia e Cultura, São Paulo, vol 24, n9, p806, set 1972

4 comentários:

Unknown disse...

Ótimo texto e linda mensagem!

Unknown disse...

Ah, que delícia de texto...... inspiração pura!

naraepedro disse...

Belo belo belo. Reflexões sobre os laços dos traços poesia das letras contadas. Parabéns Re Gentile pelo texto. Nara

naraepedro disse...

Belo belo belo. Reflexões sobre os laços dos traços poesia das letras contadas. Parabéns Re Gentile pelo texto. Nara