“Eu fui
feito pela poesia, não ela por mim”
Goethe
por Renata Gentile - Collectivus de Leitura
Tantos anos lendo
histórias, ou como gostamos de dizer, “mediando leitura” para crianças, jovens
e adultos, nos fizeram constatar que quando a literatura é apresentada de forma
prazerosa temos grandes chances de formar leitores.
Sabemos também que
muitos são os elementos que contribuem para o prazer na leitura: a
possibilidade de fruição de uma obra literária (sobretudo às infantis que
compõem textos, ilustrações e projetos gráficos primorosos); a liberdade na
significação da narrativa e no manejo do objeto livro; a exploração de
diferentes interações com as historias; a possibilidade de conhecer o mundo,
como coloca Antonio Candido (1972), inclusive o próprio mundo interno, como
sugere Bruno Bettelheim (1978).
Ou seja, quando
entendemos a mediação de leitura como uma ação cultural – sem uma
intencionalidade pedagógica que busca alcançar resultados, passar uma mensagem
ou adquirir competências – ela torna-se uma situação prazerosa, fundamental
para o percurso do leitor em formação.
Mas além de
facilitar uma situação caracterizada pela interação, liberdade e fruição, o
mediador de leitura cumpre um importante papel também quando transmite
vocalmente um texto. Alguma coisa acontece quando emprestamos a voz para um
texto literário...
As crianças costumam
demonstrar com o corpo. Respondem de modo singular, às vezes relaxando, se
aconchegando, outras vezes agitando-se com a diversão, interação e ludicidade
que o livro propõe. Fogem do padrão de comportamento de atenção suposto pelos
adultos, ou porque dormem ou porque se movimentam, fazendo com que seja
repensado o que deve ser um comportamento leitor.
Quando lemos para
adultos e adolescentes percebemos que se surpreendem, tanto com o inusitado da
ação (“eu sei ler, por que estão lendo para mim?”) como também com as sensações
que ouvir uma história lhes causa.
Não é incomum quem
escuta uma história “confessar” que não acompanhou os acontecimentos da
narrativa, que na realidade “viajou para longe”, mas que estava gostoso e que
se sentiu “entregue” a voz que dava vida ao livro. Nas mediações de leitura por
vezes, crianças escolhem narrativas longas, a principio inadequadas às suas
idades, mas ainda que não estivessem “entendendo” o conteúdo do livro, pedem
para continuar e até para repetir a leitura.
Então nos
perguntamos: “por que é tão prazeroso ouvir uma história?”; “de onde vem esse
prazer?”. Além de todos os elementos
já citados, a tese apresentada nesse artigo é que esse prazer vem de longe...(talvez
lá de onde a gente vai parar quando viaja nas historias.)De longe mesmo, nos primeiros
meses de vida. No inicio da aquisição da linguagem, lá onde começaram a nos
entender como sujeitos; no tempo da delicadeza do “manhês”.
O “manhês” é o
termo dado ao modo como as mães – ou os agentes da função materna – falam com
os bebês. Aquela fala que abusa de neologismos e de frases curtas, que tem uma
melodia, entoação, ritmo, musicalidade. Tal como nos poemas e prosas poéticas,
gêneros muito presentes na literatura infantil.
A voz que
transmite o texto literário saboreia as palavras, se movimenta com o ritmo,
dança com a sonoridade dos versos...embala o bebê que fomos. O próprio silêncio que surge com as pontuação
do texto ou ao virar as páginas do livro são como as pausas que a mãe faz
quando espera a resposta vocalizada de seus bebês.
Além da
musicalidade, outra analogia entre o manhês e a mediação de leitura é que ambos
convocam o interlocutor, fazem olhar para quem fala, produzem um laço afetivo
entre criança e adulto.
“Nessa
operação exercida pelo agente da função materna, por meio de seu olhar e sua
voz, o bebe deixa de ser puro organismo para inserir-se em um funcionamento
simbólico, próprio dos humanos” (Maria Lacombe Pires, 2011).
Nos primeiros dias
de vida o choro do bebê é constante e apresenta o mesmo tom em diferentes
situações. Com o passar dos meses e a partir da fala que lhe é dirigida, o bebê
vai modulando sua vocalização dependendo da situação utilizando sua voz como
instrumento para chamar o outro. Assim, o bebê aprende com o "manhês" a se
expressar. Dá notícias a uma mãe atenta se está com fome, frio, sono.
Esse estatuto de
sujeito provocado pelo adulto que se dispõe ao dialogo também é provocado pelo
mediador de leitura que abre brechas para que a subjetividade da criança se
expresse na interação com o livro. Lembrando que essa expressão não está para
atender a expectativa do adulto e que pode ser inclusive o silencio, o sono, a
fala, um movimento.
Ouvir histórias é,
portanto, prazeroso por diversos aspectos; entre eles porque remete a uma
experiência vivida, fundante da nossa posição de sujeito no mundo.
Incentivemos então que a função poética da
literatura (re)enganche os laços entre adultos e crianças. Que experiências de
leituras compartilhadas estejam presentes na relação de pais e filhos,
educadores e alunos para que assim, continuemos nos apropriando da linguagem,
da leitura e dos livros. Que a voz de mediadores continue nos ninando. Desse
modo, seguros e acalantados, seguiremos nos expressando ao mundo.
PIRES, Maria
Lacombe. “Falar com bebês. Será que eles entendem?”in Entre o singular e o coletivo – Ao
acolhimento de bebes em abrigos. (org Fernanda Nogueira) São Paulo, 2011
BETTELHEIM, Bruno.
“A Psicanalise dos Contos de Fadas”. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1978
CANDIDO, Antonio.
A literatura e a formação do homem. Ciencia e Cultura, São Paulo, vol 24, n9,
p806, set 1972
4 comentários:
Ótimo texto e linda mensagem!
Ah, que delícia de texto...... inspiração pura!
Belo belo belo. Reflexões sobre os laços dos traços poesia das letras contadas. Parabéns Re Gentile pelo texto. Nara
Belo belo belo. Reflexões sobre os laços dos traços poesia das letras contadas. Parabéns Re Gentile pelo texto. Nara
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